Desigualdade da renda do trabalho no Brasil na primeira década de 2000: um recorte (pequeno) da estrutura produtiva nacional, por Vladimir Camillo

A estrutura produtiva da economia brasileira condiciona a desigualdade de renda do trabalho ao criar um perfil de demanda por trabalho muito heterogêneo. A hipótese central que liga a estrutura produtiva nacional a desigualdade da renda do trabalho pode ser enunciada da seguinte forma:

i) a estrutura produtiva brasileira é polarizada: de um lado, predominam atividades econômicas mais tradicionais, de baixa e média intensidades tecnológicas, que demandam uma força de trabalho de menor qualificação e de baixa remuneração; de outro lado, há poucas atividades mais avançadas, com elevada intensidade tecnológica, que demandam um tipo de trabalho mais qualificado e de melhor remuneração. Sendo assim, a estrutura produtiva gera uma polarização em termos tecnológicos e salariais, mantendo elevada a dispersão salarial e a desigualdade de renda. Na primeira década de 2000, houve uma maior demanda por trabalho de baixa e média qualificações, expandindo seus rendimentos (embora continuem relativamente baixos) e aproximando-os dos ocupados de maior qualificação que perderam participação na renda do trabalho em função de uma menor demanda por trabalho de maior qualificação.

Desagregando essa estrutura produtiva por meio dos três grandes grupos de atividades (agropecuária, serviços e indústria), nota-se a forte heterogeneidade produtiva nacional, com reflexos sobre as estruturas de emprego e de salários, com impactos sobre a desigualdade da renda do trabalho. Uma parte (muito pequena) dessa heterogeneidade pode ser visualizada por meio das desigualdades de renda dos três grandes grupos de atividades nacionais:

Tabela 1. Desigualdade de renda média do trabalho por grupos de atividades econômicas (2002-2009)

Inicialmente cabe uma consideração de natureza metodológica: além das estatísticas contidas na tabela 1, realizou-se um teste de bootstrap para averiguar se estatisticamente a queda da desigualdade de renda do trabalho, entre 2002 e 2009, apresentou alguma significância estatística. O resultado obtido, após 100 reamostragens ramdomicas com repetições, mostrou que a queda foi significativa a 5%. A maior queda da desigualdade da renda do trabalho, medida pelo coeficiente de GINI, ocorreu para a indústria nacional, gerando a menor desigualdade dos três grupos de atividades, atingindo um GINI de 0,45 para Brasil em 2009. A agricultura, mesmo apresentando a maior taxa de crescimento real do rendimento médio, continua com um rendimento médio baixo, muito inferior ao salário mínimo de 2009, sugerindo a existência de um mercado de trabalho agrícola com algum grau de precarização. Além do rendimento médio baixo, a agricultura também apresentou a maior desigualdade de renda, indicando forte dispersão salarial e de rendimentos. Diferenças regionais tradicionais mostram-se nos rendimentos médios do trabalho, apontando a região Nordeste como a de menor rendimentos nos três grupos de atividades, mas com uma taxa de crescimento real da renda superior a das outras regiões, promovendo assim uma redução nos hiatos de rendimentos entre o Nordeste e as demais regiões.

O crescimento relativamente elevado do rendimento médio do trabalho da agricultura nacional, que se situou próximo a um salário mínimo em 2009, contribuiu com o crescimento da massa salarial dos decis inferiores da distribuição de renda total do trabalho, auxiliando esses decis a se aproximar dos decis intermediários e superiores. As rendas maiores da indústria e dos serviços na região sudeste (respectivamente R$1150 e R$ 1243 em 2009), cresceram relativamente pouco (exatamente 5% para os dois grupos de atividades). Como a região sudeste absorve parte expressiva dos ocupados nessas atividades industriais e de serviços, o crescimento relativamente reduzido dos maiores rendimentos nessas duas regiões sugere que os decis superiores poderão perder participação relativa na distribuição da renda do trabalho total. As maiores taxas de crescimento da renda na indústria ocorreram nas regiões com participações relativamente menores na estrutura do emprego industrial nacional (Nordeste, Norte e Centro-Oeste) e na faixa de rendimentos intermediários.

Comparando a desigualdade de renda da indústria com os serviços, é possível perceber acentuadas diferenças, com os serviços apresentando rendas mais concentradas. A perda de participação relativa nos decis superiores da distribuição pode indicar que a demanda por trabalho mais qualificado não cresceu suficientemente no período de 2002 a 2009. Ao contrário, o crescimento da participação dos decis inferiores sugere uma expansão maior da demanda por trabalho de média e baixa qualificações. A desigualdade de renda dos grandes grupos de atividades, seus respectivos rendimentos médios e a distribuição de seus ocupados são condicionados, dentre outros fatores, pela interação da demanda por trabalho com a oferta de trabalho. Essa interação é condicionada pela estrutura produtiva que, no caso específico da realidade brasileira de 2002 a 2009, parece ter influenciado a redução dos ocupados agrícolas em função do crescimento da sua produtividade total dos fatores (PTF), que provavelmente superou seu crescimento econômico, aumentando sua renda média acima dos outros setores. A demanda por trabalho gerada pela produção industrial e de serviços, provavelmente estimulou mais os empregos e as ocupações de baixas e médias qualificações, promovendo a elevação dos rendimentos desses trabalhadores, gerando sua aproximação com a renda dos mais qualificados que cresceu menos. Assim, com os rendimentos dos mais qualificados crescendo menos que os rendimentos dos menos qualificados, gera-se um tipo particular de redução da desigualdade de renda. Esse tipo particular de queda na desigualdade da renda do trabalho,embora relevante, sugere que não houve mudanças profundas na estrutura produtiva nacional, tampouco em seu mercado de trabalho.

1) Excerto de pesquisa em desenvolvimento no programa de Estudos Pós Graduados em Economia Política da PUC-SP, sob a supervisão da professora Anita Kon. Contudo, a responsabilidade por erros e omissões é exclusivamente do autor.
2) Esse resultado da rotina de bootstrap alinha-se com a literatura nacional (com AZEVEDO, 2006, por exemplo). Contudo, o fato da queda ser significativa estatisticamente, não pode ser interpretada como uma redução da desigualdade que foi capaz de levar a desigualdade de renda do trabalho brasileira a um patamar considerado reduzido.
3) Outra consideração de natureza metodológica merece destaque: o GINI foi estimado excluindo-se as rendas “zero” dos ocupados, com o propósito de se medir apenas a desigualdade entre os ocupados que efetivamente auferiram renda. Também é importante considerar que as rendas médias do trabalho foram deflacionadas por meio de deflator especial para as rendas da pesquisa nacional por amostras de domicílio (PNAD), construído por CORSEIUL et al. (2002).
4) Em 2009, a renda média do trabalho per capita do terceiro decil inferior foi de R$ 363, muito próximo dos R$ 359 da agricultura nacional.
5) A literatura nacional que tem buscado explicar a queda da desigualdade da renda do trabalho na primeira década de 2000, particularmente até 2005, tem mostrado essa queda dos decis superiores na distribuição da renda do trabalho, além de apontar redução do rendimento médio do trabalho entre 2002 e 2005 (DEDECCA, 2007). 6) Mais recentemente, alguns estudos, utilizando metodologias distintas, têm mostrado que o rendimento do trabalho dos qualificados apresentou redução, na primeira década de 2000 (KON, 2012). Também há resultados que indicam que “o Brasil tem criado muitos postos de trabalho, é verdade, mas esses postos de trabalho têm sido destinados relativamente mais para uma força de trabalho pouco qualificada” (MENEZES, 2012).
7) Sobre esse tipo particular de redução da desigualdade de renda do trabalho, pode-se considerar o seguinte resultado como complementar: “no período de 2002 a 2005, três de cada quatro novas oportunidades foram para pessoas com segundo grau completo, sendo que as ocupações para este nível de escolaridade foram predominantemente remuneradas abaixo de dois salários mínimos” (DEDECCA, 2007). Sendo assim, poucos ocupados foram demandados com elevada qualificação e escolaridade.

Referências bibliográficas

AZEVEDO, João Pedro. Avaliando a significância estatística da queda na desigualdade no Brasil. In: BARROS, Ricardo Paes de; FOGUEL, Miguel Nathan e ULYSSEA, Gabriel. Desigualdade de renda no Brasil: uma análise da queda recente. Brasília: IPEA, 2006.

CORSEUIL, Carlos Henrique e FOGUEL, Miguel Nathan. Uma sugestão de deflatores para rendas obtidas a partir de algumas pesquisas domiciliares do IBGE. Rio de Janeiro: IPEA, 2002 (texto para discussão nº 897).

DEDECCA, Claudio Salvadori. Economia, mercado de trabalho e distribuição de renda – 2002-2005. In: Ministério do trabalho e emprego. Análise da pesquisa nacional por amostra de domicílios. Brasília: MTE, 2007.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa nacional por amostra de domicílios. Brasília: 2002 e 2009 (microdados)

KON, Anita. Desafios atuais do mercado de trabalho brasileiro: criação de empregos e sustentabilidade. In: KON, Anita e BORELLI, Elizabeth (organizadoras). Indústria, Tecnologia e Trabalho: desafios da economia brasileira. São Paulo: [s.n.], nmuo2012.

MENEZES, Wilson F. Probabilidade de transição do desemprego e da inatividade para a ocupação no mercado de trabalho brasileiro. In: KON, Anita e BORELLI, Elizabeth (organizadoras). Indústria, tecnologia e trabalho: desafios da economia brasileira. São Paulo: [s.n.], 2012

Autor
Vladimir Camillo é economista e professor.

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